O começo do fim da quarentena na Itália

Meu aniversário foi no dia 15 de março. A quarentena tinha começado há pouco mais de uma semana; depois disso, se intensificou e restringiu até a distância de casa que se poderia ir.

Nesse dia, pegamos nossas bicicletas e fomos num mercado mais perto do centro da cidade, que tem produtos melhores; um mercado mais caro, mas era meu aniversário e eu queria comer bem.

O dia estava nublado, feioso. Combinava com as ruas vazias e o silêncio que ocupava os caminhos que, dias antes, eram cheios de gente. Todo domingo, o centro da cidade ficava lotado. Nesse, éramos eu, meu marido e uma ou outra pessoa que surgia às vezes.

Descemos das bicicletas pra ver o por do sol em uma ponte perto de onde ficava o Airbnb que alugamos quando viemos pra cá. Pulamos o portãozinho para pisar na grama e fomos até perto da água. Nenhum som; até respirar fazia barulho demais. O céu ficou rosa e, enquanto a temperatura caía no começo da noite, pensei que demoraria um bom tempo até vê-lo assim de novo. Foi um aniversário tão estranho, com tantas outras prioridades que não eram maus 30 anos, que, até hoje, às vezes respondo 29 quando alguém me pergunta minha idade.

Nos 48 dias de quarentena que vieram depois, o sol se pôs colorido várias vezes, mas foi difícil de vê-lo de casa, porque o prédio da frente do meu é mais alto e fica com a vista toda só pra ele.

Ficamos 48 dias em casa. Saíamos uma vez por semana, pra fazer compras, e só. Do sofá para a varanda, para a academia improvisada na garagem, para o banheiro, para o sofá.

No começo, ir ao mercado era o momento que eu mais esperava; com o tempo, se tornou a pior coisa da minha semana. Odiava ver a rua vazia, com as pessoas distantes e evitando até trocar olhares. A fila do supermercado e suas constantes limitações – um metro de distância! Só uma pessoa por casa! Máscara! Luvas! – me dava arrepios. Os carros da polícia, que passavam o tempo todo para garantir que ninguém estava fora de casa sem motivo, eram piores ainda.

Especialmente depois da vez que, voltando do mercado com ovos de Páscoa, a polícia me parou. Não foi nada de mais, só tive que preencher a autocertificação dizendo que estava indo fazer compras. Mas tremia tanto que o próprio policial me dizia, rindo, pra ficar calma.

 

Depois disso, sair de casa ficou ainda pior. Tinha que respirar profundamente só pra por o pé do lado de fora do portão. Ficar em casa se tornou confortável e seguro, talvez até demais.

 O começo do fim

Na segunda-feira, dia 27 de abril, o governo do Veneto se adiantou ao nacional em uma semana e liberou sair de casa a pé e de bicicleta, sempre com a máscara. Mas, por falta de tempo, vontade ou confiança, só fizemos isso no sábado.

E, depois de 48 dias, visitamos o centro da cidade.

Era um sábado quente, que praticamente exigia que a gente fosse pra rua. Antes de chegar à avenida que nos leva até a estação e, depois, ao centro, já era perceptível que tinha algo novo: muito mais pessoas passeando, do jeito que você imagina que alguém passeie, com pedaladas sem pressa e o olhar despreocupado.

O olhar, aliás, mudou, e é compartilhado, percebido. Até se nota, pelo levantar das bochechas e pelas linhas que surgem nos cantos dos olhos, que as pessoas sorriem para as outras.

Eu estava com medo de passar a primavera toda em casa, e me emocionei ao perceber que estava de short, pedalando num dia de sol, com a grama bem verdinha e partículas de algo que decidi ser pólen voando por todo lado. Vi casais passeando de braços dados; uma senhora que estava com sua família na calçada e acenou energicamente para o rapaz que trabalha na quitanda, como se não o visse há muito tempo; um grupo de meninos adolescentes, cada um na sua bicicleta, se cumprimentaram aos gritos enquanto pedalavam um em volta do outro; crianças bem pequenas, que não precisam usar máscaras, corriam como se fosse só mais um sábado.

No Prato Della Valle, deu pra ter uma dimensão real do quanto as pessoas gostaram do decreto do Veneto: estava cheia como antes da quarentena. Mas uma olhada mais atenta mostrava que, apesar da praça estar cheia, todos usavam máscaras, luvas e mantinham a distância entre si, aprendendo aos poucos a conviver com a presença do vírus.

Até a feira do fim de semana estava acontecendo, mas tamanho muito reduzido (antes, ocupava todo o círculo; agora, só um quarto) e com a entrada controlada, para evitar que lotasse. Comprei flores para a casa, enchi o cestinho da bicicleta de cores.

Depois, continuamos com nossas bicicletas pelo centro até chegar na Specola, um dos lugares mais bonitos desta cidade, que tira meu fôlego desde a primeira vez que estive aqui.

Admirei rapidamente, já que o banco onde me sentaria para olhar a torre com calma estava ocupado por um grupo de amigos que tomava cerveja e tagarelava, com as máscaras apoiadas no queixo e um passo de distância entre cada um. No meio do canal, alguém colocou uma estátua que parece uma madonna com uma máscara cutucando o nariz de um bebê (talvez minha miopia tenha me traído nessa interpretação).

Pra terminar o passeio, o obrigatório sorvete na Piazza Dei Signori. É quase uma tradição para nós, desde que nos mudamos pra cá, quando a temperatura do gelato e do clima não era tão diferente.

Agora, aprendemos mais uma adaptação da pandemia: nada de casquinha, só copinhos, e tudo d’asporto, isto é, pra levar pra casa. Ou, no caso de um gelato na praça, para tomar na escadaria da Loggia del Consiglio. Pegamos um lado onde não tinha mais ninguém, com vista para uma fonte de água e uma lata de lixo. Tinha tantas embalagens de sorvete que deduzimos que metade da cidade teve a mesma ideia que nós. Já a fonte, que sempre recebia alguém para tomar água, dessa vez só foi ativada por uma mulher, para que seu cachorro bebesse. Depois do sorvete, também a ativei com o antebraço para lavar o copinho e tomar água.

Fazer um passeio tão clichê depois de quase dois meses sem mal ver gente foi emocionante por uma série de motivos. Mas o principal foi ver como a vida continua, e que nunca tinha ido embora; estava só dentro de casa, como deveria, num esforço coletivo para, enfim, poder sair de novo.

A vida continua, e não é pós-Covid; é durante. Aprendemos e nos adaptamos para viver em segurança, cuidar uns dos outros e ter a certeza de que, embora a máscara esconda o sorriso, a felicidade hoje é um passeio de bicicleta num sábado ensolarado.

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Giovana Penatti

Giovana Penatti

Giovana mal pode esperar pela terça-feira à tarde na qual estará tomando um drink numa praia no Mar Mediterrâneo rindo muito de tudo isso. Enquanto isso, escreve sobre viagem e morar no exterior por aqui!