Desde antes de vir para a Europa, eu tinha o objetivo de um dia ter minha própria Dr Martens. Já tive coturnos de todas as cores, de várias idades e tudo o mais, mas nunca uma Dr Martens. Não verdadeira, pelo menos.
As “inspired”, sim. Em um espaço de um ano, tive uma de verniz bordô e uma preta de plataforma. Note que foi no espaço de um ano: a de verniz, no fundo, era muito pequena, e me desfiz assim que tomei coragem. A de plataforma durou mais, mas a sola se partiu na metade e achei que ficaria mais caro levar num sapateiro em euros do que comprar outra.
Eram sapatos de uns 19,90 euros – se não me engano, esse foi realmente o preço que paguei em cada uma, sempre em promoção. Decidi que queria sapatos que durassem mais, mesmo que custassem mais, e dizem que as Dr Martens duram décadas. E custam cerca de 189 euros. Eu, claro, nunca tive 189 euros sobrando para gastar numa bota.
Uma vez, em Bolonha, encontrei uma Dr Martens num brechó: 60 euros. Tinha a bandeira do Reino Unido na parte da frente e parecia usada, mas tudo bem: 60 euros. Também era um pouco grande, mas era só por uma meia grossa, e eram 60 euros! Mas eu também não tinha 60 euros naquela época. Alguns meses depois, no meu aniversário, ousei voltar ao mesmo brechó para tentar a sorte. Claro que não estava mais lá. 60 euros!
No entanto, aprendi duas coisas importantes: de fato, dava para encontrar Dr Martens nos brechós. E por 60 euros – essa, portanto, virou minha referência de preço.
A saga pela Dr Martens de brechó
Para facilitar a minha vida, eu realmente adoro um brechó. Quem costuma acompanhar o blog sabe disso, porque já falei de outros brechós em Roma e em Barcelona. Então, toda vez que entrei num brechó desde esse dia em Bolonha, foi com o olhar travado na possibilidade de encontrar minha bota.
Além disso, para dificultar a minha vida, acho que não são muitas as pessoas que usam Dr Martens na Itália. E também não são muitas que deixam em brechós. Aliás, mesmo em Barcelona, nos brechós mais descolados – e padronizados – do Bairro Gótico, nem sinal de uma bota da marca.
E, então, chegamos a Roma. No nosso último de três dias na cidade, depois de visitar o Museu Vaticano e comer no Borghiciana (dei essa dica neste post), queria levar meu marido para ver o Panteão, porque tinha certeza que ele ia adorar. Demos sorte de, no caminho, passarmos por uma viela bem italianinha chamada Via del Governo Vecchio, com paralelepípedos escorregadios por causa da chuva, toda curvadinha, com os restaurantes reabrindo depois da pausa pranzo… E brechós!
Mais um brechó em Roma pra por no seu roteiro
Assim que passei na frente de um deles, vi um sapato baixo com estampa floral e acabamento de linha amarela nos cantos. Ao lado, uma bota marrom, surrada, com a linguinha escrita “AirWair” atrás. São Dr Martens!
Por dentro, o brechó parecia um dos que visitamos na nossa primeira vez em Londres, em Camden. Era abarrotado de coisa por todos os lados: sapatos amontoados no chão, embaixo de roupas espremidas em cabides e pelo menos duas alturas de araras. Prateleiras infestadas de bolsas meio tortas, chapéus, boinas. Bijouterias amarelas brilhantes. Dava para perder um bom tempo empoeirando os dedos ali, mas meus olhos estavam no chão: tem que ter uma Dr Martens aqui para mim.
E tinha! Não apenas uma, mas duas, uma vermelha e uma preta. Além disso, eu não sabia meu tamanho, mas ia descobrir agora.
A primeira foi sofrida para entrar: couro duro, costura apertada, pés inchados do dia todo caminhando. Então, olhei a sola: intacta. Parecia nunca ter sido usada! Em seguida, empurrei o pé e, passado o esforço, ele se acomodou perfeitamente dentro dela. Parei por alguns segundos. Isso deu certo??
Na etiqueta do preço: 80 euros.
“Não”, lembrei: “existem Dr Martens por 60 euros. Eu vou pagar 60 euros.” Deixei essa bota de lado e experimentei a preta. Ela estava mais surrada, com o couro cortado dentro (mais alguém com o colo do pé alto sofreu com o modelo), já não tinha mais a linguinha no tornozelo que ajuda a calçar. Coube, mas não teve aquela sensação de Cinderela. A etiqueta, no entanto, dizia 60 euros.
Para quem já foi perseguida no centro de Los Angeles num domingo às 6 da manhã, decidir entre pagar 60 ou 80 euros em uma bota é com certeza um grande upgrade na vida.
Na verdade, a bota de 60 euros foi descartada imediatamente; não queria pagar 60 euros numa Dr Martens mutilada. Já a de 80 euros parecia nova demais para ser verdade, e cara demais para eu estar realmente disposta a levá-la.
Decidi que na volta a gente compra, escondi o par no fundo de uma arara e comecei a pensar em voz alta na rua com meu marido, enquanto caminhávamos até o Panteão.
Era 20 euros mais cara do que eu queria, mas uma nova custa 110 euros a mais que isso. E estava realmente novinha, nova demais, será que é fake?? Ahhh, é isso: só pode ser fake. Vamos ver no Google. Olha bem a cor da etiqueta. O detalhe da sola. O couro é diferente, parece couro de verdade, não o couro ecológico da foto. Eita. Será que ela é vintage mesmo??
Foram uns 15 minutos de ponderação. Nem chegamos ao Panteão. Bati o martelo: vamos voltar e comparar com as fotos do Google.
O caminho de volta foi mais rápido, com a urgência de chegar antes que alguém encontrasse meu esconderijo de botas no meio das araras em um brechó numa tarde chuvosa em Roma em outubro de 2020.
Sinceramente, quais eram as chances?
Ela ainda estava lá, claro.
Observei os detalhes da sola, da etiqueta, da costura do acabamento. Vi o logo por dentro, a numeração, observei a qualidade do acabamento por dentro.
Era original. Não tinha como não ser.
Respirei fundo e olhei a conta bancária. Dava para pagar, mas eram 80 euros, né? 80 euros. Vamo lá.
Levei o par até a vendedora, sem sentir aquela satisfação de quando a gente compra alguma coisa que queria muito. Aliás, a minha sensação era de estar fazendo algo errado, como se minha mãe fosse me dar bronca depois. E faz uns 15 anos que minha mãe desistiu de me dar broncas. Percebi que era eu mesma quem estava pronta para me arrepender de algo que eu queria muito.
A vendedora pegou as botas, olhou a etiqueta. “Tá errado isso, o preço é outro”, falou tranquilamente. Eu gelei. Afinal, mal estava convencida a pagar 80 euros. Não poderia ser mais.
“Na verdade, custam 60 euros”.
Dei risada, olhando incrédula para o meu marido. E foi assim que comprei minha Dr Martens no brechó em Roma por 60 euros.
E que brechó é esse?
O tal brechó se chama Abiti Usati di Michele Salvatore. Ele tem duas unidades na mesma rua, a Via del Governo Vecchio, uma no número 33 e outra no número 35.
É um brechó que foi aberto em 1976 e parece ter algumas peças lá desde essa data! Além dos sapatos Dr Martens, dá para achar outros itens de marca: Gucci, Chanel, Celine…
No entanto, a graça está em vasculhar entre as peças sem marca, mesmo. Afinal, tudo tem uma aura cool, uma cara de figurino, as tais peças statement, sabe?
Se você procura brechós legais em Roma, este post fala de alguns que são maneiros, mas o MAIS LEGAL é o do Michele Salvatore.
Moral da história: o melhor brechó é o que tem a sua Dr Martens de 60 euros.
Ah, sim: por fim, fomos no Panteão.