“Você nem parece imigrante”: cara a cara com o privilégio branco na Itália

Sentada em uma poltrona larga debaixo de um guarda-sol na rua, esperava meu almoço chegar: uma lasanha de cinco euros, a opção mais barata do menu, como de costume. Havia visto o preço num quadro do lado de fora do restaurante, que ficava bem na entrada de uma galeria. Sempre me esqueço que o serviço na mesa tem o adicional do coperto, uma taxa de serviço de uns 2 euros. A lasanha custou, no fim, 7 euros.

Na mesa ao lado, que era a mais próxima da porta, uma garota digitava freneticamente no celular enquanto fumava. Quando o vento ficava um pouco mais forte, vinha aquela fumaça toda na minha cara. Tem poucas coisas que eu odeio mais na Itália do que o costume dos italianos de fumar o tempo todo, em qualquer lugar. E minha cara parece que é um ímã de fumaça.

Tem uns cantinhos na Itália que parece que foram feitos para você não fazer nada

Enquanto tentava aproveitar o famoso dolce far niente e esquecer o cheiro que inevitavelmente ficaria no meu cabelo o dia todo, uma movimentação chamou minha atenção: duas crianças alegres e falantes saíram da galeria. Corriam em volta das duas mulheres que as acompanhavam, mexiam nas plantas decorativas, davam risada; as adultas conversavam entre si apressadas algo que ninguém ali compreendia, num idioma que ninguém mais conhecia.

A garota da outra mesa se levantou e, com passos decididos, sentou na mesa do meu outro lado. Um alívio para mim, pois tinha medo que até a lasanha ficasse com cheiro de nicotina, e não de molho. Percebi, depois, que ela ainda observava, de canto, o grupinho que estava na porta.

Pouco depois, os quatro seguiram seu caminho: as mulheres passaram batendo papo na minha frente, tentando segurar as crianças pela mão. Elas, livres, continuavam curiosas e saltitantes, alheias a qualquer coisa que não fosse a alegria de, não sei, talvez ter a tarde livre depois da escola.

Assim que passaram pela moça, ela se levantou com o mesmo andar pesado e voltou para a mesa original.

O privilégio branco

Antes de ir para a Itália, tive uma curiosidade muito particular: como será que são as pessoas italianas comuns? Então, procurei na geolocalização do Instagram na cidade do meu bisavô. Ri ao ver que as garotas se pareciam comigo: a pele bem branca, com sardas discretas, olhos redondos e os cabelos lisos, castanhos, naturalmente mais claros nas pontas.

Já na Itália, inúmeras vezes me perguntaram de onde eu era, porque “tem um sotaque quando você fala, mas não sei de onde é”. Ao dizer que era brasileira, esperava duas respostas: “mas você parece italiana” e/ou “brasileira, branca assim??”.

A primeira reação não me importa tanto; eu mesma já tinha visto que me parecia com a maior parte das moças da minha idade, especialmente na região que moro. Isso não me incomoda, ao menos não isoladamente. Acho curioso como, três gerações depois, eu aparentemente herdei algo muito italiano, geneticamente falando.

A segunda, no entanto, me deixa extremamente desconfortável ao confrontar estereótipos que a gente sabe que existe, mas só encara quando vai para o exterior. Foram ainda piores (e bem raros, preciso dizer) os casos em que ela veio acompanhada por outro comentário desrespeitoso com todas as mulheres brasileiras. Não vou me aprofundar nisso, porque repetir certas coisas não serve para muita coisa além de dar palco para racismo e misoginia; acredito que vocês já imaginem o tipo.

Eu sou brasileira, nascida e criada no Brasil. Esta foi a primeira vez que morei em outro país. Recentemente, obtive a dupla cidadania, mas isso não faz que eu não seja uma imigrante.

Tinha dificuldade em entender o idioma, via comidas muito diferentes no mercado, não conseguia fazer amigos, percebia os olhares ao redor quando falava meu idioma nativo em público, meu dinheiro não valia quase nada, sentia saudade de casa. Meus perrengues na Itália eram, de modo geral e desconsiderando uma longa lista de privilégios e facilitadores, os de alguém que veio de um país emergente.

Morar na Itália era ser, com muita frequência, lembrada de que sou imigrante, mas sou branca. Ninguém nunca discriminou ao me ouvir falando português, segurou a bolsa ao passar por mim, desviou o caminho ou desistiu de sentar ao meu lado no trem.

Mas fui, algumas vezes, inserida em conversas sobre como imigrantes são um problema para o país, como se eu não fosse uma – e até teve a emenda de algo como “mas você é [trabalhadora/inteligente/algum adjetivo desses que perde todo o significado nesse contexto, como se as pessoas que vêm em busca de abrigo ou de uma vida melhor não fossem nada disso]”. Culparam a imigração pela falta de trabalho e a crise econômica quando eu comentei que pretendia morar em alguma cidade – “lá tem muito imigrante, então acabou o emprego”. Lembrava meu interlocutor que eu também era imigrante e recebia a mesma relativização de antes como resposta.

Isso dói. Já doeria normalmente ouvir discursos tão preconceituosos e míopes sobre pessoas que nasceram em países diferentes; afinal, empatia é um mal necessário para conquistar alguma mudança. Mas, em meio à crise dos refugiados na Europa e morando em um país que elegeu um governo reconhecida e assumidamente ultranacionalista e xenófobo, a dor vem acompanhada de uma culpa enorme por ser “aliviada” da carga de imigrante.

É claro que eu não gostaria de sofrer preconceito por ter nascido em outro país; eu gostaria que ninguém sofresse. Que, assim como eu, as pessoas recebessem interesse e curiosidade ao contar sobre suas terras natais, e não que fossem vistos como ladrões de emprego ou culpados pela criminalidade. Que as conversas com todas as pessoas vindas de longe se tornassem oportunidades de aprender, e não julgamentos incessantes sobre culturas e costumes diferentes.

Eu tenho 29 anos de idade. Consigo me comunicar em pelo menos quatro idiomas. Estudei a vida inteira em escola particular, fiz uma universidade pública no Brasil, consegui todos os empregos que busquei. Juntei dinheiro sem fazer nenhum grande sacrifício e decidi vir sozinha para a Itália. Sei que ter um passaporte vermelho me faz, legalmente, tão italiana quanto qualquer pessoa nascida aqui. Mas, cultural e socialmente, eu sou brasileira, não-italiana. Tenho a plena consciência de que posso nunca me adequar em outro país, ainda mais num mundo com muros que parecem cada vez mais altos.

Sabendo da minha posição de imigrante privilegiada, faço o que posso para construir pontes e abrir portas para tentar tornar a vida de outros imigrantes mais fácil. Confronto afirmações preconceituosas com fatos, questiono relativizações e exijo retratações. Afinal, “mas eu estou falando isso entre nós, não falaria isso para um marroquino/nigeriano/indiano” não é um pedido de desculpas; é assumir o preconceito e se recusar a desfazê-lo.

Ao lembrar das moças asiáticas com as crianças alegres na porta do restaurante, me indigno ao pensar na garota tão irritada a ponto de mudar de lugar ao vê-los. Sei que não era pela bagunça, porque a cena toda não deve ter durado sequer um minuto. Eu, ainda com um visto de turista, estive ao lado dela o tempo todo; eles, não importa o status de seus vistos, incomodaram assim que surgiram.

Tão decidida a identificar injustiças e combatê-las, assisti à cena sem prestar muita atenção e, talvez por isso, demorei para entender o que tinha acontecido. Depois, demorei para ter certeza do que ocorreu. No fim, não fiz nada. Chegou a lasanha, quentinha, pronta para me queimar a língua. Foi o almoço mais caro e indigesto da minha vida.

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Giovana Penatti

Giovana Penatti

Giovana mal pode esperar pela terça-feira à tarde na qual estará tomando um drink numa praia no Mar Mediterrâneo rindo muito de tudo isso. Enquanto isso, escreve sobre viagem e morar no exterior por aqui!