“Vamos no mercado hoje”, disse para o meu marido anteontem, num dia que não sei direito qual era na semana ou no mês. Estamos há pelo menos duas semanas vivendo um dia após o outro e, quando se vive assim, não faz muito sentido manter contagens a longo prazo; não há planejamento a ser feito e os que existiam antes estão, por ora, suspensos. “Acho que hoje vai vir o decreto que fecha tudo, e amanhã vai ficar um caos fazer compras”.
Eu estava certa: às nove e quarenta da noite do dia 11 de março, o presidente Giuseppe Conte anunciou a suspensão de todas as atividades comerciais em toda a Itália, com exceção de serviços essenciais, como supermercados, farmácias e tabacarias.
No dia seguinte, decidido a comprar mais algumas garrafas de água e papel higiênico, meu marido demorou quase uma hora no mercado. “Estava cheio mesmo, ainda bem que fizemos a compra ontem”, comentou ao chegar em casa com os braços pesados com o peso das compras e a dificuldade para carregá-las. O novo decreto também diz que somente uma pessoa por núcleo familiar pode ir ao mercado de cada vez.
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Todas essas medidas visam restringir a circulação de pessoas para que o contágio seja freado. A China adotou medidas semelhantes, mas ainda mais rígidas, e começou a ter resultados positivos, com uma queda brutal em novos casos. A Itália, com mais de 15 mil casos confirmados em apenas quatro semanas, segue o mesmo caminho, e o resto do mundo parece concordar: eventos em diversos países onde o vírus meio que acabou de desembarcar, como os EUA e o Brasil, já estão cancelados.
Ontem foi nosso primeiro dia de quarentena – valia até inserir aspas aqui, acho. Primeiro, porque não é obrigatória: o governo recomenda fortemente que ninguém saia de casa, mas não proíbe todo e qualquer cidadão de por o pé na rua. Se precisar sair, é preciso andar com uma autocertificação, declarando o motivo pelo qual está “in giro”. Mas, principalmente, porque é voluntária: nós decidimos ficar em casa, pela nossa saúde e pela dos outros.
Acordei umas 9 da manhã, sem despertador. Com a cabeça treinada para me levantar às 6 todos os dias para assar cornetti no café da manhã no restaurante onde trabalho, já estava há três horas dormindo leve. Passei um café, algo que não fazia há algum tempo, desde que abdiquei de tomá-lo casa para tomá-lo no trabalho e ganhar 15 minutos a mais de sono. Comi um pacote de quatro torradas que uma amiga que voltou para o Brasil no começo da epidemia nos deixou.
Ela voltou porque seu curso tinha terminado e, coincidentemente, foi quando as coisas começaram a ficar mais tensas por aqui. Nos vimos pela última vez numa festa em sua casa, na qual ela lamentou que mais da metade dos convidados não foram por medo do vírus. Ganhamos abraços – ainda não estavam proibidos – e torradas. Tomei o café lentamente enquanto lia as últimas notícias sobre o vírus no celular.
Notei que estava difícil respirar. “Acho que estou com o vírus”, pensei por um segundo. Lembrei que essa dificuldade de respirar foi diagnosticada, quando eu tinha uns 10 anos, como ansiedade. Tenho sempre. O remédio? Respirar de novo, e de novo, pensar só em respirar, até voltar ao normal. Alguns bocejos forçados depois, daqueles que fazem sair lágrimas dos olhos, pude não pensar em respirar de novo.
Me sentei no sofá e olhei para a guitarra que comprei há umas duas semanas. Paguei 90 euros numa loja de objetos usados; veio a guitarra e um amplificadorzinho. “Ainda bem que comprei”, pensei, lembrando que esses 90 euros fizeram falta no orçamento, e continuariam fazendo, se a vida toda não estivesse em pausa agora. “Vou tentar lembrar como se toca”. Procurei algumas tablaturas na internet e fiquei um bom tempo tentando lembrar as músicas da minha adolescência. Toquei “To Be With You”, do Mr. Big, e me diverti um monte. Ficou meio torto, mas acho que até o fim da quarentena vou tocá-la bem.
Nesse meio-tempo, meu marido acordou e foi ao mercado. Eu comecei a lavar a louça e, quando vi, estava com o limpa-vidros na mão esfregando todos os espelhos da casa; o bichinho da faxina. Uma faxina era quase obrigatória nesse dia, uma coisa meio mística, para limpar todas as energias e preparar nosso lar para nos aguentar por pelo menos três semanas.
E, claro, livrar as maçanetas e espelhos de luz de qualquer possibilidade de coronavírus.
Cerca de quarenta minutos e muita superfície esfregada depois, o marido voltou do mercado e propôs que seguíssemos nossos treinos na academia que improvisamos na garagem – no começo da semana, quando a academia anunciou que estaria fechada por tempo indeterminado, fomos até a Decathlon para comprar elásticos, um kettlebell e colchonetes. O Gustavo é muso fitness; eu só entrei na onda para produzir minha endorfina diária, matar um tempo e, de quebra, ficar com os braços durinhos.
Mais uma hora do dia foi embora enquanto suávamos na garagem. Ao voltar para casa, a primeira coisa que fizemos foi a higiene com ares de precaução: lavar as mãos cantando “Love On Top”, da Beyoncé. Meu marido não conhece a música, então cantei sozinha enquanto ele torcia a cara porque eu canto alto demais. Para o almoço, sugeri a recriação de um prato do restaurante onde trabalho – eu só sei cozinhar o que tem no menu. Passamos a tarde vendo filme, eu no computador e ele no celular; o início de vida na Itália ainda não permitiu termos TV. Justo agora, que o Playstation 4 que veio na minha mala seria muitíssimo bem utilizado, continuará guardado.
Pelo menos até segunda-feira, porque, dizem, as entregas continuam. Meu salário deve cair normalmente na segunda, então posso comprar uma TV pela internet e aguardar sua entrega.
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Mais uma sorte que dei nesse cenário de azar total foi ter um emprego com contrato indeterminado, que tem as horas semanais previstas no contrato. Isso significa, segundo meus colegas, que receberemos o salário normalmente, mesmo com essas semanas de suspensão. O meio azar foi que o outro emprego não tem essa garantia, mas tudo bem, porque esse segundo emprego é o “extra”; nossas contas são todas garantidas com o primeiro.
Outra sorte que dei foi que meu marido adora cozinhar, então fazer comida em casa não é exatamente um problema para ele. No nosso primeiro dia sem sair, ele fez uma carne moída bem lenta, macia e saborosa, com uma panelona de arroz. Hoje, prometi fazer panquecas. No jantar, com certeza será algum tipo de macarrão. Eventualmente, vou improvisar um yakissoba, porque comprei shoyu só para isso. Uma torta de qualquer coisa. Um omelete com o que tiver. Em tempos diferentes, a gente tem que ser criativo.
Mas, para nós, são tempos diferentes, mas não difíceis. Difícil é ser o médico que está trabalhando 16 horas por dia, na linha de frente da epidemia; é ser o idoso que começou a ter febre; é ser o entregador da Glovo que só ganha dinheiro se estiver na rua pedalando. Ficar em casa, protegido desse perigo invisível, ou melhor, cuidar da própria saúde, é um luxo. E, como todo luxo, é fácil de se acostumar… Mas não vejo a hora de estar em casa por opção, não por obrigação.
Agora, estamos no segundo dia. E não tem como saber até quando irá a contagem. Respiro fundo algumas vezes até esquecer novamente de respirar e vou procurar alguma coisa pra fazer. Acho que hoje vou costurar botões que caíram das minhas roupas.
(plot twist: fiz uma tatuagem.)
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